Hoje vou falar de Memória, a memória que temos da nossa vida, dos parentes e amigos, a memória que construímos ao longo dos anos. A memória política, a memória dos tempos de infância, dos tempos de escola e faculdade, do primeiro trabalho e do primeiro namorado, o primeiro sorriso da primeira filha.
Nós construímos muitas memórias ao longo da nossa vida, às vezes, até esquecemos de algumas, mas basta uma centelha e lá vem a memória caducar nossa saudade ou nossa tristeza. A minha centelha foi uma limpeza que resolvi dar no meu basement. À medida que eu ia desencaixotando coisas, foram pulando na minha frente fotos, pedaços de papel, cartões postais, cartas, escritas, rascunhos de aulas e de entrevistas feitas décadas atrás.
Acabei sentando no chão e deixei aquilo tudo reconstrui pedaços da minha vida. A limpeza do basement podia esperar, mas as histórias que aquelas fotos e papéis contavam, ah, essas eram inadiáveis.
Março é um mês, por si mesmo, cheio de lembranças. Tem o dia da mulher, tem um acidente muito sério que meu filho sofreu, tem a invasão pela imigração da fábrica Michael Bianco em 2007, em New Bedford. Trezentos e sessenta e um imigrantes foram presos nas primeiras horas da manhã por um batalhão de 300 agentes de imigração. E tem o golpe militar que levou o Brasil a mais de 20 anos de ditadura. Os anos mais negros da nossa história e que quase se repetiram no dia 8 de janeiro de 2022.
Eu aposto que pelo menos a metade das leitoras e leitores desta coluna não têm ideia do que estou falando. Não tinham nascido ou eram jovens demais e nunca tiveram a chance de conhecer a verdadeira história do dia que durou 21 anos.
A batida da imigração e o golpe de 64 trazem memórias muito fortes. Em 2007, por exemplo, eu estava quase na fronteira do Canadá participando de um evento numa universidade. No café-da-manhã, alguém comentou que ouvira no rádio o anúncio da blitz da imigração. Confirmada a notícia, não tive dúvidas, expliquei para meus anfitriões que precisava estar em Massachusetts, pequei o carro e enfrentei a tempestade de neve que começara no dia anterior.
Dezenas de brasileiras e brasileiros estavam entre os presos, mães que não voltariam para casa naquele dia, crianças que não foram apanhadas na escola, famílias separadas sem dó nem piedade. Nessas horas você testemunha o melhor e o pior do ser humano. Muita gente ajudou a identificar quem eram as mulheres presas, as crianças e adolescentes largadas a esmo e muitos advogados abdicaram de seus honorários para defender e libertar mães e pais de família.
O 1º de abril de 1964 – os militares preferem dizer que o golpe aconteceu dia 31 de março – foi um banho de água fria esperado mas ninguém supunha que viriam com a fúria que se concretizou e que duraria mais de duas décadas.
Nossas memórias precisam ser preservadas porque elas contam a nossa história. As boas devem ser guardadas do lado esquerdo do peito e as más nunca devem ser esquecidas para que nunca se repitam.