A Coisa Ficou Preta: a arte de Gleyson Borges como denúncia, afeto e retribuição
Wilson Smith
Em meio ao concreto cinza das cidades, onde as camadas da vida urbana escondem e revelam histórias, Gleyson Borges tem deixado sua marca com impressões em papel coladas em paredes e muros — cada intervenção realizada carrega camadas de significados. Criador do projeto A Coisa Ficou Preta, o artista visual alagoano transforma as ruas em verdadeiras galerias a céu aberto por meio de intervenções com lambe-lambe, que atuam como ferramentas de retribuição, denúncia e empoderamento. Seus trabalhos não apenas ocupam o espaço urbano; eles criam zonas de escuta e identificação para pessoas negras. Para Gleyson, a arte é o meio pelo qual ele devolve ao mundo aquilo que um dia lhe salvou: a consciência de sua identidade e potência como homem negro.
Lançado em novembro de 2018, A Coisa Ficou Preta não se trata apenas de colar imagens — trata-se de colar existências, colar histórias, colar reparações onde o Estado e a sociedade tantas vezes falharam.
A descoberta do fazer artístico
O caminho de Gleyson até as artes visuais foi tão orgânico quanto surpreendente. “As coisas foram acontecendo com certa naturalidade”, conta ele, ao lembrar de como ganhou um sorteio de um curso de Photoshop e, a partir disso, despertou o interesse pelo design gráfico. Trabalhou como designer e diretor de arte por anos, mas sempre teve gosto pelo trabalho manual. A virada aconteceu durante uma viagem, ao encontrar quadros de madeira pintados com stencil — peças que não pôde comprar, mas que o inspiraram a fazer por conta própria. “Eu pensei: ‘acho que consigo fazer isso’. Voltei pra casa, arrumei um palette, comprei tinta, fiz meu primeiro molde de stencil e comecei a montar quadros.”
Esse gesto aparentemente simples pavimentou o início de um percurso artístico mais consciente. Entre momentos criativos e materiais como tintas, Gleyson começava a se ver como artista e, mais do que isso, como alguém capaz de usar a arte para tocar outras vidas.
Negritude e o reencontro com a própria história
Gleyson fala com franqueza sobre o processo de se reconhecer como homem negro: “Nunca me achei branco, mas também não cresci sabendo que eu era uma criança negra. Não era uma pauta discutida na minha família, nem na escola”. Foi na infância que ele começou a perceber, ainda que de forma intuitiva, a diferença racial — como no episódio marcante do “lápis cor da pele”, que um colega pediu. “Eu tinha o lápis na cor bege, mas ele pediu cor da pele, então dei pra ele um lápis que eu chamava de amarelo queimado. E rolou meio que uma discussão, porque ele falou que aquela não era a cor da pele. E para provar, levantei meu braço com a palma da mão pra cima e coloquei o lápis no meu antebraço e mostrei. ‘É da cor da pele, sim.’ Já era uma forma de questionar um pouco e entender minha raça, mas ao mesmo tempo era uma forma de querer pertencer também, porque eu colocava o lápis na parte que fica mais protegida do sol”, relatou, descrevendo a primeira memória de como a raça atravessou sua existência.
O entendimento pleno de sua identidade racial veio mais tarde, já na casa dos vinte anos. A arte — em especial o rap — foi o fio condutor desse reencontro. Ouvindo Racionais MCs, Emicida, Djonga e outros nomes da cena, Gleyson passou a se ver nas letras, nas dores, nas lutas e na força desses artistas. “O rap me mostrou que o que eu vivia tinha nome, tinha explicação, não era acaso.”
Essa compreensão, ainda que dolorosa, despertou o impulso de retribuir. E foi com essa motivação que surgiu A Coisa Ficou Preta: um movimento visceral de devolver à comunidade negra as ferramentas que o ajudaram a se levantar. Sua linguagem foi por meio das artes visuais — e de uma vontade enorme de fazer delas um canal de transformação.
Do digital para o concreto: o poder do lambe-lambe
Durante dois anos, a ideia de criar A Coisa Ficou Preta fervia na cabeça de Gleyson, sem encontrar uma forma concreta de sair do papel. A virada veio com a descoberta do lambe-lambe — técnica de colagem de cartazes nas ruas, popular entre artistas urbanos por sua praticidade e impacto visual.
“Minha base de trabalho era digital, e eu queria levar isso pra rua. O lambe-lambe surgiu como uma solução simples, democrática e potente. Posso imprimir e colar, e qualquer pessoa pode fazer isso. É uma arte acessível.”
O lambe-lambe, para Gleyson, é mais que suporte: é resistência. Ele o considera uma linguagem democrática, que permite múltiplas formas de expressão. Além disso, o fato de estar na rua, ao alcance de todos, reforça a potência da arte como veículo de empoderamento e visibilidade.
O território como parte da mensagem
Se o lambe-lambe é a forma, o lugar onde ele é colado é parte da narrativa. Gleyson escolhe com cuidado os espaços onde atua. “A escolha do lugar varia bastante. Eu gosto muito de colar em locais que tenham algum tipo de destaque na rua, que façam sentido com a arte que está indo para ali. Mas uma coisa que gosto muito de fazer é criar artes específicas para muros específicos, criando um lambe-lambe que só vai funcionar naquele muro. Às vezes é um muro que tem dois pilares um próximo do outro e faço a imagem de uma pessoa escalando. Às vezes é um muro que está manchado de tinta rosa em nenhum padrão, como se tivessem jogado uma tinta ali de qualquer jeito, e eu faço um lambe-lambe de uma criança brincando com um balde de tinta”, relata. A rua é viva, é política. Cada muro é um território simbólico. E em suas criações existe intenção e sensibilidade artística.
Ele sabe que o espaço urbano carrega tensões e ausências — e é nessas brechas que insere sua arte. Muitas vezes, seus lambes são a única presença negra afirmativa em regiões onde corpos negros só aparecem em estatísticas ou páginas policiais. E é exatamente por isso que ele continua: para romper silêncios e abrir caminhos.
A resposta das ruas: afeto, impacto e trocas
O retorno que Gleyson recebe é, em suas palavras, o que mais o impulsiona. Crianças apontando e sorrindo para os personagens, jovens se vendo nas frases, senhoras curiosas pelas intervenções. A rua reage, a rua conversa, a rua acolhe.
Esses diálogos reforçam o papel da arte urbana como ferramenta de escuta, de construção de identidades e de disputa simbólica de território. A Coisa Ficou Preta é, antes de tudo, sobre pertencimento.
Influências, processo criativo e legado
O repertório de Gleyson é vasto e multirreferenciado. Sua principal fonte de inspiração continua sendo o rap, com destaque para nomes como Emicida, Negra Li, BK, Rincon Sapiência, Drik Barbosa, entre outros. Mas ele também se alimenta de livros, filmes, conversas, memórias e afetos. Tudo vira material criativo. “Guardo as referências numa espécie de caixinha de ferramentas. Às vezes, elas se juntam naturalmente e viram uma arte. Outras, demoram a se encaixar.”
Além disso, o artista tem se conectado cada vez mais com outros artistas visuais, especialmente de fora do eixo Rio-São Paulo. “Tem muita gente incrível no Norte e no Nordeste fazendo arte potente. É importante olhar para esses lados também.”
Loja, autonomia e sustentabilidade
A abertura da loja de A Coisa Ficou Preta foi um passo importante para garantir a sustentabilidade do projeto e ampliar seu alcance. Gleyson mantém uma loja online —www.acoisaficoupreta.com.br — onde comercializa uma variedade de produtos, como prints em fine art, adesivos e ímãs de geladeira. A proposta é ser diverso tanto na forma quanto no preço, oferecendo peças de qualidade, mas também acessíveis, para que mais pessoas possam ter contato com sua arte. Além da loja virtual, ele participa eventualmente de feiras criativas, mas a maior parte das vendas acontece mesmo pelo site. Gleyson também divulga em seu Instagram @acoisaficoupreta obras originais e intervenções exclusivas, como quadros e peças únicas.
A Coisa Ficou Preta — e isso é lindo
A trajetória de Gleyson Borges é uma travessia pessoal e coletiva. É a história de alguém que encontrou na arte não só uma forma de expressão, mas um caminho de cura e retribuição. A Coisa Ficou Preta é um projeto de corpo inteiro: feito com a cabeça, com as mãos e com o coração. Ele fala de negritude, de força, de memória e de futuro.
Ao ocupar os muros, Gleyson não apenas cola papel — ele estampa vivências, imprime urgências e inaugura possibilidades. Em tempos de retrocessos e silenciamentos, sua arte é um chamado à ação, à escuta e à construção de um mundo mais justo e plural.