Yara Pão: artista que faz dos muros urbanos verdadeiras telas

Wilson Smith

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A artista visual fala sobre o início da sua trajetória, o respeito pela paisagem urbana, a importância da técnica e as vivências transformadoras no meio artístico 

“Eu sou Yara Pão, sou natural de Maceió, Alagoas, tenho 30 anos e formação acadêmica em Design pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas. Iniciei a minha trajetória com a prática do desenho quando criança e adolescente” Assim começa a história de uma mulher potente que transforma muros em janelas criativas, presenteando a  cidade com respiros artísticos por meio dos seus traços e cores. 

Ainda criança, Yara encontrou nos desenhos uma forma de brincar com a imaginação. Os cartazes feitos em família, os concursos de escola, as camisetas do terceirão — tudo apontava para um talento que se tornaria profissão. “No ensino fundamental, participei de um concurso de desenho para a camisa dos jogos internos. Meu desenho foi aprovado. No ensino médio, fui chamada para fazer as camisas do terceirão. E no terceiro ano recebi o prêmio The Best, que elegia os melhores em cada área da escola. Eu fui escolhida na categoria artes”, esses passos iniciais já mostravam que nesse fazer artístico já existia algo muito significativo. 

Mas, o destino se consolidou quando, em 2013, ela presenciou uma intervenção do grupo Mcz Crew, no bairro do Jaraguá.

“Eles estavam pintando no antigo Rex, foi uma intervenção espontânea. Eu estava lá, vi aquilo e fiquei completamente encantada. A partir desse dia, passei a me juntar com eles e comecei a pintar voluntariamente na rua. Realmente, com a ideia de expressar a arte, de ter essa vivência urbana, foi muito pela paixão. Na época não tinha a menor noção de que isso poderia ser uma profissão.”, relata a artista. 

O primeiro traço: certeza de um caminho

A primeira vez que pintou em um muro foi um divisor de águas.

“Era uma parede detonada, um espaço abandonado. Não era autorizado, mas o grafite tem essa natureza intransigente. A minha primeira intervenção foi apagada em menos de uma semana, a polícia apareceu no mesmo dia. Mas, mesmo assim, eu tive certeza, e lembro da sensação de estar cantando uma música do Novos Baianos ‘Vou mostrando como eu sou, e vou sendo como posso’. E olhando assim para cima e pensando, meu Deus, eu quero fazer isso pro resto da minha vida, eu me encontrei aqui, E já passaram mais de dez anos, fácil, num piscar de olhos”, compartilha a artista que preserva essa sensação muito viva ainda. 

Esse início foi marcado pela urgência de ocupar e experimentar: mais do que um gesto crítico, era uma entrega visceral à cidade. Com o tempo, o grafite deixou de ser apenas a vivência espontânea da rua e se tornou também pesquisa, método e reflexão.

Universidade e descobertas

Mesmo desejando cursar artes plásticas, Yara se deparou com a ausência de uma graduação pública na área em Alagoas. Optou então pelo curso de Design, na UFAL. Foi ali que nasceu o projeto Cidades & Signos, vinculado ao Proinart – Proex, um programa de extensão universitária, que foi criado com mais dois colegas e a professora Anna Maria Vieira, que também era responsável pela coordenação.

“Eu queria muito algo ligado à arte, e criei esse projeto para poder explorar isso dentro da universidade. Juntei estudantes de diferentes áreas, cada um com sua linguagem: teatro, arquitetura… eu fiquei com o grafite e a arte urbana. Esse projeto foi fundamental. A gente não precisava mais se inscrever em editais: a própria universidade nos convidava para expor e intervir. Eu recebi bolsa, que me ajudava a comprar materiais, e pude criar uma rede de contatos e experiências. Participei de Bienais, pintei na Justiça Federal, estive em exposições na Pinacoteca. Para um artista iniciante, isso foi uma base muito sólida”, compartilha a artista, o projeto foi uma experiência agregadora e tinha colaboradores de várias áreas. 

O processo criativo: entre o íntimo e o urbano

Hoje, a criação de Yara começa no silêncio da observação.

“Primeiro eu analiso o espaço, depois conecto com meu estado atual. Já passei por fases menos coloridas da vida e isso se refletiu nas obras. Então, a criação é sempre uma mescla: responsabilidade com o entorno e expressão do meu estado emocional. Depois vem a fase prática — rascunhos, estudos, mood board. Gosto de ter 80% do projeto definido antes da execução, porque isso garante estética e economia de tempo e recursos. Mas isso não tira o peso artístico. Até um rabisco de caneta no canto de uma folha tem força, já anuncia uma ideia grandiosa.”

A pluralidade de técnicas é outro traço marcante: aquarela, acrílica, spray, realismo, abstração.

“Então bebo de muitas fontes, de muitas referências e culturas e exploro isso nos meus trabalhos, às vezes de uma forma unificada, onde eu misturo todos esses elementos, ou em etapas separadas, em projetos separados”, é a criatividade que move.

Arte na rua: entre riscos e responsabilidades

Com o passar dos anos, Yara amadureceu a relação com a cidade. Seu olhar é crítico e cuidadoso:

“Nem todo espaço precisa de intervenção. Às vezes, o reboco descascado de uma parede é uma memória valiosa, um patrimônio. Não posso chegar e simplesmente cobrir isso. Respeitar o espaço é fundamental, mesmo que eu tenha que flexibilizar minha identidade visual.”

Mas a rua também é desafio.

“Como mulher, eu não consigo me sentir segura sozinha pintando. E ainda tem a questão da saúde: spray, tintas, altura. A gente precisa falar mais de segurança, de uso de EPIs. Porque já vi acidentes graves. Quando trabalho em murais grandes, sei que tenho a responsabilidade de cuidar não só de mim, mas também da equipe que está comigo.”

Histórias que ficam na pele

Se cada parede guarda uma história, cada projeto vivido por Yara se tornou também uma experiência humana. Ela fala da tia artista que lutava contra a depressão e que foi homenageada em um lambe-lambe:

“Minha tia criava por pura necessidade visceral, fazia artesanato com garrafas recicladas. Na exposição, expus uma foto dela em preto e branco, imensa. Foi muito forte. Trouxe à tona saúde mental, envelhecimento e também minha relação afetiva com ela.”

Yara recorda oficinas com idosos do campo, experiências em abrigos de moradores de rua, clínicas de reabilitação e até presídios femininos.

“Na penitenciária, em Recife, estar no meio daquelas mulheres foi muito forte. Mas não era sobre culpabilizar. O grafite me ensinou a enxergar o humano. Essas vivências transformam a gente. Mudam nossa empatia, nosso respeito. A arte dignifica.”

Histórias que voltam anos depois em mensagens inesperadas. “Um jovem de uma clínica de dependência química me escreveu para agradecer. Disse que desde nossa oficina estava sóbrio, firme na vida. É disso que falo quando digo que a arte transforma.”, a arte é uma ferramenta transgressora. 

Olhar feminino nas artes visuais

A artista ocupa os muros com sensibilidade e firmeza. Suas obras não apenas colorem a cidade, mas também afirmam a potência das mulheres como protagonistas na construção da paisagem urbana e simbólica. Em cada traço, Yara reafirma que o feminino tem presença, tem força, tem lugar — e que sua arte é um ato de reivindicação e pertencimento. Ao ocupar os espaços urbanos com suas cores e narrativas, ela inscreve na cidade uma nova forma de existir e de ver o mundo: sensível, crítica e profundamente transformadora.

E a mensagem que deixa ecoa como um chamado:

“Busque pela sua verdade, porque cada pessoa é única e tem a possibilidade de criar, de construir uma história sem igual, para que ela não simplesmente copie o que um outro diz, fala, expressa, pinta, que ela tenha a flexibilidade de beber de muitas fontes e saber filtrar o que faz sentido ou não para ela, e sempre colocar ali envolvido uma questão da responsabilidade com o que é feito, mantendo sempre o respeito ao próximo. E divirta-se muito, aproveite o processo”, aconselha a artista. 

Yara Pão segue desenhando sua trajetória com a mesma intensidade com que colore os muros — entre técnica e emoção, entre o íntimo e o coletivo. Sua arte é gesto e pensamento, é corpo que se inscreve na cidade e, ao mesmo tempo, devolve humanidade a ela. Ao transformar concreto em poesia visual, Yara reafirma o poder da arte como instrumento de afeto, crítica e pertencimento. Sua caminhada, marcada por coragem e sensibilidade, deixa um rastro de cor e consciência, inspirando novas gerações a ocuparem seus próprios espaços, a pintarem suas próprias verdades e a entenderem que cada muro, assim como cada pessoa, carrega uma história que merece ser contada.

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