O grito que tomou as ruas do país neste domingo não foi figura de linguagem. “Basta de feminicídio” expressa uma realidade que os dados oficiais tornaram impossível de negar: o Brasil permanece entre os lugares mais perigosos do mundo para ser mulher. Em 2024, segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, foram registrados 1.450 feminicídios e outras 2.485 mortes violentas de mulheres não classificadas como feminicídio, mas reconhecidas como homicídios ou lesões seguidas de morte. Na prática, cerca de dez mulheres são assassinadas por dia, muitas dentro de casa e por homens com quem mantiveram vínculo afetivo.
O panorama de longo prazo aprofunda o alerta. Entre 2013 e 2023, 47.463 mulheres foram assassinadas no país, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São treze mortes por dia ao longo de uma década, com incidência desproporcional entre mulheres negras e em territórios de maior vulnerabilidade. Só em 2023, foram 3.903 homicídios de mulheres, taxa de 3,5 por 100 mil habitantes, movimento que contraria a queda dos homicídios gerais. No mesmo ano, o Ministério da Saúde notificou 275 mil casos de violência contra a mulher, mais de 64% vinculados à violência doméstica. Esses números revelam um padrão: antes de cada feminicídio, existe um percurso de agressões, ameaças e pedidos de socorro que o Estado não consegue — ou não se dispõe — a interromper.
O problema não é a falta de leis. A Lei Maria da Penha se aproxima de duas décadas, e a Lei do Feminicídio completou dez anos com a pena máxima ampliada para 40 anos após sanção presidencial. Mesmo assim, o Conselho Nacional de Justiça registrou 959 mil novos casos de violência doméstica em 2024 e mantém 827,9 mil medidas protetivas em andamento. A base nacional do Sinesp registrou 1.128 feminicídios consumados até outubro de 2024. E o Judiciário já contabiliza 8.300 processos de assassinato de mulheres, contra 7.400 no ano anterior. A impunidade continua ampla, e a resposta institucional não acompanha a escala da violência.
Diante desse cenário, as manifestações que ocuparam ruas em várias capitais não podem ser tratadas como episódios isolados. Representam um ponto de ruptura política e social. Milhares de mulheres e homens marcharam em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Belém, Porto Alegre e dezenas de outras cidades, carregando cartazes com nomes de vítimas, faixas denunciando negligências institucionais e exigências por proteção efetiva. O movimento, impulsionado por coletivos feministas, organizações comunitárias, trabalhadoras da periferia, estudantes e mães em luto, transformou avenidas em espaços de memória e cobrança.
As reivindicações são claras. As ruas pedem delegacias da mulher 24 horas, ampliação de casas-abrigo, monitoramento eficaz de medidas protetivas, enfrentamento à violência digital, combate ao ódio misógino e políticas estruturantes em saúde, educação, assistência social, renda e moradia. A crítica não se limita ao agressor individual; aponta para instituições que produzem leis avançadas, mas falham em implementá-las, desfinanciam programas essenciais, retardam julgamentos e normalizam o risco diário de ser mulher no Brasil. A frase repetida em diversos atos — “não tem mais como não vir para a rua” — não deve ser lida como gramática formal, mas como diagnóstico coletivo: tornou-se impossível permanecer em silêncio.
O feminicídio não é uma coleção de tragédias isoladas. É a face extrema de um projeto de poder sustentado pelo machismo estrutural. Os dados mostram que o país é capaz de reduzir homicídios quando há decisão política. O que falta é aplicar essa mesma energia, prioridade e coordenação à proteção das mulheres. A mobilização nacional recoloca o tema no centro da agenda: ou o Brasil trata o feminicídio como emergência de segurança pública e de direitos humanos, com recursos, prioridade e responsabilização efetiva, ou continuará multiplicando velórios enquanto repete frases de indignação. As ruas já deixaram claro que a negligência institucional não será mais tolerada. Agora, cabe ao Estado demonstrar se está disposto a romper esse ciclo.










